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Maués: a cidade do guaraná

Perdida na Amazônia, Maués deu origem ao refrigerante e vive hoje graça ao grão

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Os pequenos frutos vermelhos da pequena Maués deram início a um gigantesco negócio, avaliado hoje em cerca de US$ 2 bilhões por ano. Essa é a estimativa do dinheiro que gira em torno do guaraná, desde a produção do fruto até as vendas de refrigerantes. Foi Maués, cidade amazônica de 41 mil habitantes, a 270 quilômetros de Manaus, que inspirou a Antarctica, em 1921, a inventar o refrigerante à base de guaraná. O produto virou um sinônimo de Brasil, rende R$ 3,4 bilhões anuais em vendas para seus diferentes fabricantes e conquistou consumidores em países como Portugal, Espanha, Porto Rico e até Japão.

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Maués, cidade cortada por mais de 12 rios, garante sozinha mais de 30% da produção brasileira do refrigerante. Já no início do século passado, a qualidade dos frutos da região havia tornado popular um suco que atraiu os pesquisadores da Antarctica. Hoje Maués colhe e vende tudo o que planta - cerca de 180 toneladas anuais, produzidas por pouco mais de 3 mil pequenos agricultores.

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A maioria das propriedades não ultrapassa 2 hectares, mas o fruto do guaraná nascido em Maués tem mercado certo, pela tradição e pelos métodos artesanais de preparo. 'A origem de Maués funciona como um selo de qualidade', afirma Tibiriçá Thompson Bernardes, dono de uma empresa que transforma por mês 400 quilos de semente em pó e em bastão.

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Vem de longe o título de Cidade do Guaraná. O lugar foi cenário do primeiro relato sobre a semente, no século XVII. Um missionário jesuíta registrou o uso do fruto vermelho pela tribo dos saterés-maués, os primeiros habitantes da região. A semente que conferia força e resistência aos índios garante hoje mais da metade da economia local.

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Enquanto na Bahia, o maior Estado produtor, o guaraná é beneficiado em máquinas similares às usadas na torrefação do café, no Amazonas a maior parte dos fornos é de barro. Com isso, os grãos são torrados lentamente, conservam melhor suas propriedades e também garantem preços melhores. 'Nossos grãos são maiores e têm mais cafeína', assegura o produtor José Augusto Dias Ribeiro, de 30 anos. A maioria dos 2 mil pés de guaraná plantados em 4,5 hectares é mais velha do que ele. Nascido e criado entre as sementes, Ribeiro se orgulha da tradição guaranazeira de seus antepassados. 'Nunca ninguém de minha família trabalhou com outra coisa', afirma. O guaraná pontua a vida local. Em novembro, uma festa marca o início da colheita e a venda de quase toda a produção para a AmBev, que usa as sementes para fazer mais de 800 milhões de litros anuais de Guaraná Antarctica.

 

As histórias de prosperidade levaram à região gente como Luzínio Paz Dias, de 33 anos. Ele largou o garimpo em Itaituba, no Pará, disposto a conseguir um pedaço de terra em Maués. Depois de mais de um mês de viagem em barcos e canoas, chegou com apenas R$ 2 no bolso. No mesmo dia, conseguiu lugar em um puxirum, uma espécie de mutirão para a limpeza de guaranazeiros, que lhe garantiu algumas diárias de R$ 7. Hoje, cinco anos depois, Luzínio aguarda a primeira colheita de seus 400 pés de guaraná. Nos três anos de espera exigidos pela planta para começar a dar fruto, o cultivo da mandioca e a venda de coco lhe garantiram algum rendimento. 'Aqui a gente só usa dinheiro para comprar roupas e a gasolina da rabeta (canoa pequena com um motor na popa). Para comer, só é preciso pescar, plantar ou trocar.'

 

Até os anos 80, Maués era líder absoluta na produção do guaraná, com 90% da pequena produção brasileira. Mas a ampliação do uso comercial da semente, incorporada pela indústria farmacêutica e de beleza, animou milhares de agricultores no baixo sul da Bahia, na antiga zona cacaueira. Em menos de dez anos, com plantios mais novos e produtivos, o Estado se transformou no maior produtor nacional, com 2.500 a 3 mil toneladas de sementes anuais. A queda da produção do Amazonas, por causa de pragas, fez a cotação do quilo do produto baiano atingir R$ 17 na década de 90. Hoje Maués leva vantagem. Ali, o quilo do guaraná, de maior qualidade, é vendido a R$ 7. Na Bahia, o preço médio é de R$ 1.

 

Maués nunca perdeu a coroa de melhor produtora do Brasil, mas quer voltar a ser o principal pólo de produção. Um programa de revitalização da cultura, liderado pela AmBev, pretende aumentar a produtividade em até oito vezes. A idade avançada dos cultivos, em torno de 40 anos, as pragas e o mau uso de técnicas agrícolas fazem com que os produtores amazonenses obtenham cerca de 80 quilos por hectare, dez vezes menos que os da Bahia. 'Um guaranazeiro tem uma boa produtividade até os 25 anos. Depois, começa uma curva descendente', afirma o agrônomo Renato Cardoso Costa Júnior, gerente da Fazenda Santa Helena, unidade de pesquisa da AmBev. Para reverter a situação, já foram distribuídas cerca de 200 mil mudas de genética superior, desenvolvidas pela Embrapa. 'A nova variedade é mais resistente', diz o pesquisador Murilo Arruda.

 

Apenas duas pessoas sabem a fórmula do refrigerante
Orlando Araújo, de 76 anos, guarda um segredo dentro de um cofre protegido por uma senha alfanumérica: a fórmula do primeiro refrigerante de guaraná. A informação é privilégio de quem trabalhou por mais de meio século na Antarctica e hoje, aposentado, presta consultoria para a AmBev. Apenas mais um assistente conhece a mistura. Nem mesmo os executivos da empresa têm acesso à combinação - não se sabe nem quantos ingredientes são necessários para a fabricação do produto.

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No fim da década de 50, ainda químico recém-formado, Orlando recebeu a missão de construir em Maués uma fábrica de extratos. Em vez de transportar o guaraná em grão, apenas o extrato com os princípios ativos do fruto seria enviado para São Paulo. Para chegar ao povoado, o único acesso possível era o barco, numa viagem de mais de dez horas partindo de Manaus. O lugar escolhido foram as margens do Rio Maués-Açu, pela facilidade de escoamento da produção. A fábrica ficou pronta em 1963. 'Maués tinha apenas algumas ruas de terra', relembra Orlando. 'Tenho até hoje a sensação de que vi a cidade crescer.' 

Reportagem publicada na Revista Época (04/08/2003).Por Cátia Luz

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